30 junho, 2007

Send your Love - Sting (clica aqui)

This ain't no time for doubting your power
This ain't no time for hiding your care
You're climbing down from an ivory tower
You've got a stake in the world we ought to share

Cedo ou tarde


Devias saber
que é sempre tarde
que se nasce, que é
sempre cedo
que se morre. E devias
saber também
que a nenhuma árvore
é lícito escolher
o ramo onde as aves
fazem ninho e as flores
procriam.

(Albano Martins)

Recordações num sábado ao fim da tarde

Lembras-te da senhora Júlia, a velhota que fazia as suas refeições no Nacional? Sim aquela que dizia que lhe apetecia pegar-me ao colo, quando eu estava grávida do Rui, porque eu lhe parecia um bebé. Lembro-me dela de vez em quando. Sobretudo quando me falam no tamanho dos meus pés e das minhas mãos.
Quando as pessoas olham os meus pés e mãos devem ficar com a sensação de que eu sou muito mais pequena do que sou na realidade.
A verdade é que as pessoas têm tendência a diminuir o meu tamanho. D faz isso sempre que me vê e fala às amigas dos meus pés e das minhas mãos terminando sempre com a expressão se visses!
Adélia também fez o mesmo quando me viu com os pés à mostra. Disse que eu era "toda muito pequenina mas muito bem feitinha". Acontece que tenho a estatura de uma mulher vulgar, 1, 60m e cerca de 50kg de peso. É verdade que a minha ossatura é estreita o que faz com que eu pareça mais pequena. Falsa magra como às vezes me dizem os empregados das lojas e eu peço um número e eles querem dar-me um mais pequeno. Falsa uma gaita. Que culpa tenho eu de ter nascido assim, de osso pequeno? Mas como dizia o meu pai, sou um osso duro de roer. Na verdade tão duro que nunca parti nenhum...
Não sei porque te falo nisto. Estava à janela, o fim de tarde está bem bonito, o cabo Espichel está mesmo aqui ao pé de mim, a luz está um espectáculo e eu lembrei-me da velha senhora Júlia que não sei se ainda é viva, mas se for é realmente muito velha... quase tanto como esta paisagem linda que eu vejo todos os dias e de que nunca me canso. Se calhar porque nunca é mesma.

29 junho, 2007

Pagu - Maria Rita (clica aqui)

Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira
Sabe o que é ser carvão
Eu sou pau pra toda obra
Deus dá asas à minha cobra
Minha força não é bruta
Não sou freira nem sou puta

Quem escreve


Quem escreve quer morrer, quer renascer
num ébrio barco de calma confiança.
Quem escreve quer dormir em ombros matinais
e na boca das coisas ser lágrima animal
ou o sorriso da árvore. Quem escreve
quer ser terra sobre terra, solidão
adorada, resplandecente, odor de morte
e o rumor do sol, a sede da serpente,
o sopro sobre o muro, as pedras sem caminho,
o negro meio-dia sobre os olhos.

(António Ramos Rosa)

Mais um país inventado

Há dias uma colega dizia-me pela enésima vez que não dissesse sempre o que penso, que não brincasse tanto que não escrevesse neste blogue "coisas da política". Acontece que o que ela chama de coisas da política eu chamo de coisas da vida (se não se tratasse da minha vida, da vida de todos nós, estava-me nas tintas). Acontece que eu pensava que vivia num país com liberdade de expressão. Acontece ainda que me corre nas veias este sangue que faz com que brinquemos com coisas sérias, que tratemos tragédias como comédias, e se não fosse isso não sei como seria possível suportar a tristeza que me inunda todos os dias com notícias que eu, ao ouvir pela primeira vez, julgo que tenho que consultar um especialista porque os meus ouvidos não estão a funcionar...
Só que depois ouço uma e outra vez. Vejo o responsável falar em regras (pelos vistos as regras só têm aplicação num sentido e parece-me que é o mais à direita possível). E então acredito. Acredito que vivo num país novo, um país inventado, um país onde não posso brincar, não posso rir, não posso dizer o que penso sem correr o risco de ir parar a tribunal ou de ter um processo disciplinar.
E penso se foi realmente este o país onde se fez uma revolução com cravos vermelhos...

28 junho, 2007

Nao queiras saber de mim - Rui Veloso (clica aqui)

Dança tu que eu fico assim
Porque eu estou que não me entendo
Não queiras saber de mim
Hoje não me recomendo

Amanhã eu sei já passa
Mas agora estou assim
Hoje perdi toda a graça
Não queiras saber de mim

O nome parece infância



O nome parece a infância.
Quando na velhice é termos vindo
Sem pressa

Para dentro
Do nome se esvazia o corpo quando o corpo cai
É um fruto.

O nome é ainda
O modo como chamas.

O nome é a arma contra mim. O maior perigo.
Com os teus lábios podes destruir-me.

(Daniel Faria)

Aqui para nós.


Acabei de receber a visita de uma amiga que me vai levar uma encomenda para o Alentejo. E falávamos de viagens e destinos e da vida e das voltas que ela dá e nos acasos que fazem da vida o que ela é. E falámos de cidades que ambas conhecemos e de outras. E da maneira como cada uma de nós encara as cidades. Ela gostou de Barcelona mas achou-a suja. Realmente o bairro gótico e as ramblas não são propriamente um paraíso asséptico. E se fossem? teriam o mesmo encanto? Não conseguiu mergulhar na praia porque imaginou uma quantidade de esgotos da cidade a desaguarem no mar. Ainda bem que a minha imaginação não me foge para essas alturas. E todos os mergulhos que dei na praia em Barcelona aos fins de tarde me sabiam a sal e não a esgotos.
Mas aí entrou a minha dificuldade em visitar cidades que não têm mar. É claro que eu gosto de Londres mas quando volto faço a marginal de olhos no rio quase mar e encho-me de azul e de verde e não sei viver de outra maneira que não seja esta de estar perante o mar. Sou sem dúvida um ser do mar. É o mar que me cura as mazelas do dia a dia. Sempre o mar. Daí que ando há anos para visitar Toledo e não me decido. Aqui tão perto mas então?
Não consigo sequer imaginar como se pode viver longe do mar. Mas é claro que há gente da terra, e da neve e do rio e dos lagos... A vida é feita de tudo isto. E um dia destes vou mesmo a Toledo... Prometo a mim mesma... (aqui para nós, são regra geral as promessas que não cumpro).

27 junho, 2007

Have I Told You Lately -Rod Stewart (clica aqui)

And have I told you lately that I love you?
Have I told you there`s no one else above you?
You fill my heart with gladness, take away all my sadness,
Ease my troubles, that's what you do.

Quase nada de místico

Não, não deve ser nada este pulsar
de dentro: só um lento desejo
de dançar. E nem deve ter grande
significado este vapor dourado,

e invisível a olhares alheios:
só um pólen a meio, como de abelha
à espera de voar. E não é com certeza
relevante este brilhante aqui:

poeira de diamante que encontrei
pelo verso e por acaso, poema
muito breve e muito raso,
que (aproveitando) trago para ti.

(Ana Luísa Amaral)

Está na minha natureza

É claro que estou triste com o meu país. Melhor. Estou triste com o país em que vivo, porque não sei muito bem, nunca soube se este é o meu país. Somos dos lugares onde nos sentimos bem não é? É claro que tenho aqui amigos, família, a minha casa, os meus livros, a minha música. Aqui fala-se português que é a minha primeira língua. Mas será que isto chega para fazer deste rectângulo o meu país? Se calhar não.
Se calhar sim... porque quando estou fora uns dias e regresso, apetece-me ler notícias em português, sabe-me bem ouvir falar português, como se os dias que estive fora não tivessem passado de uma breve desintoxicação e logo que me cheira a Portugal, volta o vício... é por isso que eu sempre disse, ao contrário de Chico Buarque, o amor é um vício. É por isso que aqui estou. Por isso é que não fui capaz de partir e 6 anos nas ilhas iam dando comigo em doida, apesar do português... se bem que o que se fala em alguns lugares é tão difícil ou mais de entender, que o castelhano ou o francês, mas adiante que eu gosto bem dos meus compatriotas açorianos, apesar de todas as malvadezas que pretenderam fazer alguns deles... não se julga um povo por meia dúzia de tontos e para além disso tenho dois filhos nascidos por aquelas bandas... que são bem capazes de me apertar o pescoço se lerem estas palavras... como diria o Joe "I beg your pardon", que é a língua que se usa na ilha dele pelos vistos... pronto já sei que sou ruim e que jesus castiga mas o que posso fazer? Está na minha natureza.

26 junho, 2007

Entre Sodoma e Gomorra - João Afonso, Uxia e Júlio Pereira (clica aqui)


São horas de perder horas
ou de minutos apenas
entre Sodoma e Gomorra
fui ver o mar a Atenas

Poema da buganvília



Algum dia o poema será a buganvília
pendente deste muro da Calçada da Graça.
Produz uma semente que faz esquecer os jornais, o emprego e a família,
e além disso tudo atapeta o passeio alegrando quem passa.

Mas antes desse dia há-de secar a buganvília
e o varredor há-de levar as flores secas para o monturo.
Depois cairá o muro.
E como o tempo passa
mesmo contra a vontade,
também há-de acabar a Calçada da Graça
e o resto da cidade.

Então, quando nada restar, nem o pó de um sorriso
que é o mais leve de tudo que se pode supor,
será esse o momento de o poema ser flor,
mas já não é preciso.

(António Gedeão)

A culpa do Zé Povinho.

Pois é. Chegou a altura de me redimir e pedir aqui ao José que me perdoe as alfinetadas que lhe tenho vindo a dar, logo a ele que tanto faz por este país, e que, estou convicta, se às vezes parece meter os pés pelas mãos não é bem assim. O que se passa é que este povo nem sempre entende o alcance fantástico das medidas que por acção deste governo são tomadas. Mas até foi bom começar a usar o primeiro nome para me dirigir a este José porque na verdade, na verdade o que me chateia mesmo não é o José mas o Zé. O Zé pois! Esse de apelido Povinho, que votou no José. A esse é que eu devia dirigir a minha raiva e insatisfação. Porque o José está lá por causa do Zé. Por isso, hoje aqui, publicamente, neste espaço dos blogues que sei que o José tanto admira, lhe peço humildemente desculpas.
Portanto o José é um ser iluminado. E por assim ser, porque o Zé lhe deu uma maioria para governar e endireitar de uma vez este país, o José resolveu tomar medidas num campo que me é (julgo que a todos os cidadãos, cidadões incluídos) caro: a saúde. E então, o que faz o José? Com uma mão aumenta os impostos e as taxas da saúde e com a outra retira serviços dos hospitais, centros de saúde e afins, chegando mesmo a encerrar alguns. Isto é a coisa mais lógica que qualquer governante que se preze pode fazer. E para além do mais é algo de que todas as pessoas estão à espera, não é?
Não vos parece lógico que num país onde a taxa de natalidade é baixíssima, onde o incentivo à natalidade parece ser um ponto a incentivar, deixem de estar isentas das taxas de saúde as grávidas e as crianças e que o aborto seja um dos actos isentos de taxa no serviço nacional de saúde? A mim parece-me que é mesmo muito lógico. Afinal quem quer grávidas pobres e miúdos ranhosos? É assim mesmo José. Por essa e outras atitudes inteligentes é que o Zé Povinho votou em ti. E podes contar com a segunda eleição. Com as provas que tens dado era o que faltava era que não reelegesse... Era mesmo só o que faltava!

25 junho, 2007

Regaço - Mayra Andrade (clica aqui)

Morna qum conchê ainda menino, na regaço
Na hora di dispidida um crê também uvib óh morna
Bô seiva invadi nha coraçon sem limite
Ah se um pudesse bebê um cálice, bô melodia
Bô feitiço ta infeitiçam
Bô praga ta amaldiçoam
Bô seca ta secá nha peito
Mas mesmo assim um crê uvib óh morna

Anos quarenta, os meus

(foto de Eduardo Gageiro)



De eléctrico andava a correr meio mundo
subia a colina ao castelo-fantasma
onde um pavao alto me aflorava muito
em sonhos à noite. E sofria de asma



alma e ar reféns dentro do pulmao
( como um chimpanzé que à boca da jaula
respirava ainda pela estendida mao ).
Salazar tres vezes, no eco da aula.



As verdiças tranças prontas a espigar
escondiam na auréola os mais duros ganchos.
E o meu coito quando jogava a apanhar
era nesse tronco do jardim dos anjos



que hoje inda esbraceja numa árvore passiva.
Níqueis e organdis, espelhos e torpedos
acabou a guerra meu pai grita "Viva".
Deflagram no rio golfinhos brinquedos.



Já bate no cais das colunas uma
onda ultramarina onde singra um barco
pra cacilhas e, no céu que ressuma
névoas águas mil, um fictício arco-
-irís como é, no seu cor-a-cor,
uma dor que ao pé doutra se indefine.
No cinema lis luz o projector
e o FIM através do tempo retine.



(Luiza Neto Jorge)

Há coisas que nunca mudam

Não sei porque me lembrei há pouco desta estória, mas qualquer coisa dentro de mim diz que foi o Joe. Exactamente esse. O que está agora na berra todos os dias em todos os noticiários qual salvador da pátria...
Pois a estória tem quase 30 anos e passou-se em Ponta Delgada, S. Miguel, Açores.
Eu era uma jovem funcionária pública com miopia. As luzes que se usavam no local de trabalho não ajudavam. Então uma colega mais velha que se queixava do mesmo "convidou-me" a consultar um oftalmologista. E lá fomos as duas.
Após várias horas na sala de espera (o médico demorava cerca de uma hora com cada paciente e ambas tentávamos perceber porquê mas só nos vinham à cabeça maroteiras) lá fomos chamadas. Entrámos juntas. Fui consultada em primeiro lugar e cheguei a pensar que o meu caso era muitíssimo grave, uma vez que de cada vez que o médico (um homem já de idade bem avançada) me colocava um par de lentes eu via pior do que com as anteriores. Melhor dizendo, eu não via nada senão uma névoa.
Atrapalhado com o meu caso, às tantas o médico resolveu olhar para as lentes e foi então que compreendeu que estavam todas sujíssimas. Tão sujas que eu via bem pior com, do que sem lentes. Resolvido o problema lá me receitou o que devia. Depois a minha amiga foi consultada também, já sem a atrapalhação das lentes sujas.
Quando chegou a hora de pagar o médico disse-nos que não nos cobrava nada. Espantadas perguntámos porquê. O senhor explicou então que já tinha sido funcionário público e sabia muito bem que um funcionário público não ganha o suficiente para pagar uma consulta de especialidade...
E já lá vão quase 30 anos. Há coisas que nunca mudam. (Aonde é que eu já ouvi isto?)

24 junho, 2007

O Sopro do Coração - Os Clã (clica aqui)

Sim, o amor é vão
É certo e sabido
Mas então (Porque não)
Porque sopra ao ouvido
O sopro do coração
Se o amor é vão
Mera dor mero gozo
Sorvedouro caprichoso
No sopro do coração
No sopro do coração

A fábrica que eu canto



Não sei o que produz, mas é enorme,
É feita de tijolo, cor de fogo,
A fábrica que eu canto.
E à noite, quando está iluminada,
(Naquele bairro soturno, à beira rio),
Parece incendiada,
A fábrica que eu canto.

Trabalha-se de noite, nessa fábrica,
E ninguém se revolta.
De dia, nem se sabe que ela existe:
Fica sombria como todo o bairro.
Sombria, fria, triste...
- E ninguém se revolta.


Ah! mas à noite, quando se ilumina
A fábrica que eu canto,
Tem a grandeza duma tempestade!...
É um monstro de fogo, apocalíptico,
Pairando na cidade,
A fábrica que eu canto!


(Carlos Queiroz)

Tem paciência

Desatenta e avessa por natureza às notícias, só este fim de semana soube que José resolveu processar o meu vizinho do Portugal Profundo, decidindo assim fazer com que um acontecimento já mais do que batido e por isso mesmo esquecido, volte às luzes da ribalta. Cá para mim é "bater no ceguinho", ou "chover no molhado". A estória das habilitações literárias já passou de moda, agora que se chega à conclusão que um curso superior não tem mais utilidade que uma nova oportunidade... e se calhar aí, até estou de acordo com o José. Com o que não concordo é que ele intente uma acção contra o meu vizinho. Primeiro, porque como todos sabem, sou a fã nº 1 do José e ele vai perder a acção está-se mesmo a ver... e eu não gosto que ele perca. Porque cá para nós ele tem aquele feitiozinho assim um tanto ou quanto levado da breca e piora quando perde o que quer que seja. Mas pronto cada um sabe de si... e até há quem diga que afinal o José sabe de todos.
E tanto sabe de todos que lá vi uma mais coisa assim já fora de propósito, quer dizer uma reportagem, em que o José decidiu ir a Amarante só para dizer à população que o vaiou que afinal estavam enganados, que não havia razão nenhuma para o vaiarem, que ele tinha ido ali exactamente para lhes dizer que não o vaiassem, que não tinham razão, que o hospital ia manter-se tal qual como sempre, com todas as valências, etc., etc. Gostei dessa jogada de antecipação do José. Pena que as pessoas não se tenham apercebido a tempo que final andamos todos enganados quanto às suas intenções (boníssimas) e o tenham vaiado daquela maneira. Não foi bonito.
Deixa lá, José. Agora eles já sabem que afinal não és mau rapaz e só queres o bem de todos e vais ver que nas próximas eleições vais ter todos os votos e "botos" de que necessitas para continuares a fazer as tuas boas acções em prole de um povo que nem sempre interpreta muito bem o que ouve nem o o que fazes por ele. "Balha-te" deus.
E tem paciência, José.

23 junho, 2007

Cotidiano - Chico Buarque (clica aqui)

Toda noite ela diz pra eu não me afastar
Meia-noite ela jura eterno amor
Me aperta pra eu quase sufocar
E me morde com a boca de pavor






Qualquer coisa de intermédio



Eu não sou um nem outro:
Sou qualquer coisa de intermédio
M. de Sá-Carneiro


Se eu fosse o outro,
o do chapéu macio e do bigode
eternizado em cúbico arremedo,
angústia dividida em tantas partes
e óculos redondos,
podia-te contar eu guardador e sonhos


Se eu fosse o outro,
o delicado e bêbedo génio de nós todos,
o que amou estranho e sabia dizer
coisas enormes numa pequena língua
e fraco império,
se eu fosse aquele inteiro
ditado de exageros e exclusões,
falava-te de tudo em ingleses versos


E mesmo se não foi ele quem disse
(e podia até ser, que eram amigos
e o século a nascer arrepiava como já não
o fim) há razão nessa história do pilar
e do tédio a escorrer de um
para o outro


(Ana Luísa Amaral)

Fica bem. Adeus.

Como dizer-te que nunca é como imaginámos. Que pensamos que vamos ser capazes de continuar a sorrir, a brincar, a fazer de conta que estamos bem. Como explicar-te que não sou capaz de continuar. Que afinal não sou capaz.
Como dizer que esta agonia se torna insuportavel. Que me apetece acabar com isto agora e já. Só não sei como. Não sei como. Só.
Quando os médicos me disseram o que eu tinha não acreditei. Não era possível. Afinal um pequeno mal estar. Uma incapacidade de digerir as refeições sem ajuda. Uma sensação de enfartamento. Aquelas pequenas coisas de todos os dias. Tu sabes. Todos sabem.
Como contar-te minha querida. A ti que me acompanhaste a vida toda. A ti que me amaste e me infernizaste a vida com esse amor excessivo. Sem medida. Que agora eu já entendo. Que agora eu te perdoo. Que estou disposto a perdoar.
Como contar aos filhos. Como contar aos netos. Como dizer que estou podre até aos ossos. Como continuar a contar estórias se estou podre. O médico disse até aos ossos.
Nada a fazer disse ele. E eu a pensar que aguentava. Eu a pensar que podia esconder a dor. Eu a pensar que podia morrer sossegado apesar de podre.
Mas não posso. Quero morrer já. Assim de repente. Não quero mais tentar parecer que estou bem. Hoje olhei-me ao espelho e os meus olhos não se reconheceram. A alegria desapareceu. O brilho fugiu. Para onde. A alegria O brilho. Para onde.
Por isso desculpa minha querida. Quando chegares a casa estarei bem. Finalmente bem. Não terei que fingir. Não terei que mentir, estou bem. Estarei bem quando chegares meu amor. Acredita que é tudo o que eu preciso. Estar bem.
Fica bem também, meu amor de toda a vida. Como nas cartas que te escrevia há 50 anos, lembras-te?
Adeus.

22 junho, 2007

Summertime - Ella Fitzgerald & Louis Armstrong (clica aqui)

One of these mornings
You're going to rise up singing
Then you'll spread your wings
And you'll take to the sky

Casa




Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.


Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.


Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão. . .


Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.


(David Mourão Ferreira)

O sax do fim de tarde

Todas as tardes, pelas 5. O homem do saxofone chega e instala-se à porta do selfriedge's. Não consegui descobrir se vem de metro ou de autocarro. A verdade é que tem vindo todas as tardes. O homem negro do sax.
A minha intenção ao voltar todos os dias às 5 é fotografá-lo. Mas onde vou buscar coragem para lhe pedir que me deixe fotografá-lo... Com o sax. Ao saxofone.
Um belo instrumento. Que me arrepia a pele. Que atroa os ares. E eu tento o outro lado da rua de Oxford. Mas de cada vez que ergo a câmara não consigo "puxar o gatilho". Quero prender o homem do sax. Mas não sou capaz. Como se soubesse que se o aprisionar na minha câmara ele nunca mais poderá voltar ao local de trabalho de fim de tarde que escolheu e tocar as suas melodias. Ficará para sempre imóvel no retrato.
E eu não quero imobilizar o homem do sax. Eu quero, preciso que ele volte todas as tardes e toque "para mim" as suas melodias. Preciso destes fins de tarde encantatórios para poder dormir sossegada, sem medo de morrer com dor. Preciso da alegria do sax para saber que vale a pena lutar para viver. Para tentar uma vez ainda, ser feliz.
E então estou presente sem que ele me veja. Passo para cima e para baixo. Olho a banca dos jornais. Finjo interessar-me pelas notícias "in english", eu que não me interesso sequer pelas notícias em português. Eu que acho que a maior parte das vezes ler, ouvir, ver notícias é uma perda de tempo. Eu que não gosto do cheiro dos jornais. Nem das mãos sujas do negro que larga as folhas e se cola aos meus dedos. Talvez as letras não gostem daquele papel vulgar em que as imprimem. E querem fugir. Pousam-me nos dedos, tentam alcançar o meu colo.
Como as notas do sax do músico negro da rua de Oxford.

21 junho, 2007

Olhos nos olhos - Chico Buarque (clica aqui)

Quando você me quiser rever
Já vai me encontrar refeita, pode crer
Olhos nos olhos
Quero ver o que você faz
Ao sentir que sem você eu passo bem demais

Reconhecimento à loucura



Já alguém sentiu a loucura
vestir de repente o nosso corpo?
Já.
E tomar a forma dos objectos?
Sim.
E acender relâmpagos no pensamento?
Também.
E às vezes parecer ser o fim?
Exactamente.
Como o cavalo do soneto de Ângelo de Lima?
Tal e qual.
E depois mostrar-nos o que há-de vir
muito melhor do que está?
E dar-nos a cheirar uma cor
que nos faz seguir viagem
sem paragem
nem resignação?
E sentirmo-nos empurrados pelos rins
na aula de descer abismos
e fazer dos abismos descidas de recreio
e covas de encher novidade?
E de uns fazer gigantes
e de outros alienados?
E fazer frente ao impossível
atrevidamente
e ganhar-Ihe, e ganhar-lhe
a ponto do impossível ficar possível?
E quando tudo parece perfeito
poder-se ir ainda mais além?
E isto de desencantar vidas
aos que julgam que a vida é só uma?
E isto de haver sempre ainda mais uma maneira pra tudo?

Tu Só, loucura, és capaz de transformar
o mundo tantas vezes quantas sejam as necessárias para olhos individuais
Só tu és capaz de fazer que tenham razão
tantas razões que hão-de viver juntas.
Tudo, excepto tu, é rotina peganhenta.
Só tu tens asas para dar
a quem tas vier buscar

(Almada Negreiros)

Barquinhos de papel.

É verão. Diz o calendário. Como o Jorge Palma também não nego. O rio-mar está de um verde quase quase azul. Está de um azul quase quase verde. E eu penso, que peso têm as distancias? Quanto mede um kilómetro. Serão mil metros, ou um segundo? É que aqui da minha janela vejo o Cabo Espichel à frente do meu nariz. E penso que a linha que se desenha à minha frente é demasiado nítida para medir mais do que um segundo ou do que uma eternidade. Porque o verão chegou. Pelo menos no que diz respeito ao solstício.
E porque eu não ligo nenhuma ao calendário mas faz-me falta um calor de verão. Um calor a sério, como deve ser, não esta coisa dos 20 e pico graus que mais parece uma primavera anunciada. Mal anunciada, claro.
Se me condenarem à morte e perguntarem qual o meu último desejo, direi que quero morrer de calor. Não na cadeira eléctrica, com o calor da alta voltagem mas de calor num país tropical ou próximo disso. Qualquer coisa que se situe bem perto do equador. Quem sabe em cima da linha do equador.
Seguiria pois a linha e daria a volta à terra. Falo do planeta pois claro. Quanto tempo demora percorrer a linha do equador? Um segundo ou a eternidade? E se for a eternidade? Mais vale passar o resto da vida andando sobre a linha do equador do que tentando sobreviver inverno após inverno num país que não sabe quem é e não sabe para onde vai. Por mais que o José insista que sabe. Só se ele se esqueceu de nos contar. Ou eu estava distraída a fazer barquinhos de papel e passou-me...

20 junho, 2007

I've Got You Under My Skin - Michael Bublé (clica aqui)

Don't you know you fool, you never can win
Use your mentality, wake up to reality
But each time I do, just the thought of you
Makes me stop before I begin
'Cause I've got you under my skin

Texto perdido entre o escritório e o café



Não eram preciosas
eram exactas

tinham chegado em procissão
e estavam a entrar no corpo do encontro

não quis cercá-las de linhas
era tão cedo quanto tarde,
utilizava o espelho de memória
com a minúscula atenção de última hora

a história de uma perda
de que não me lembro.

(Boaventura de Sousa)

Com a minha irmã.

Como falar de mim se não sei quem sou. Lembro-me de fugir com a minha irmã para longe da minha mãe. Lembro-me de muitos meninos como nós a correr pelas ruas. Lembro-me do cheiro das buganvílias. Lembro-me do cheiro do mar. E do macaco que comia bananas no jardim da vivenda em miramar. E das barrocas de terra vermelha que desciam até à baía. Mas de mim. Não me lembro. Não sei o meu nome. Posso ser João, José ou António. Posso ser Manuel ou Francisco. Serei o que quiserem que eu seja. Mas não me tirem deste quarto. Não me levem para aquela casa onde está uma mulher que dizem que é minha mas de quem não me lembro. Onde estão um rapaz e uma rapariga que me chamam pai e eu não sei porquê. Não tenho idade para ter filhos. Sou apenas um rapazinho de mão dada com a irmã, percorrendo as ruas de uma cidade africana.
Por isso deixem-me estar neste quarto. Daqui a nada entra aí o meu amigo com umas beatas que apanhou no chão ou talvez tenha conseguido hoje cravar um cigarro a alguém que tenha vindo visitar um familiar, um amigo. A mim só a minha irmã vem ver-me. Cada vez menos, é verdade. Acho que ela tem medo de mim. Do meu amigo. De todos nós. Mesmo que eu garanta, que jure a pés juntos que aqui ninguém lhe fará mal, que está mais segura do que lá fora onde ela diz que tem uma vida, um trabalho, filhos... como pode ela ter filhos se estamos os dois de mãos dadas a observar o macaco de miramar. Se depois disto iremos dar um passeio pela cidade, até que ela se canse. Até que seja obrigado a voltar para casa. A enfrentar gente que me diz que sou crescido, que tenho que estudar e casar e ter uma família... Só quando ela me obrigar a regressar... por mim ficava aqui com ela, de mãos dadas a olhar o macaco e depois chegaria o meu amigo e fumaríamos os 3 as beatas que ele conseguiu arranjar e mascaríamos pastilhas elásticas para que a mãe não perceba que estivemos a fumar... Cá por mim era aqui que eu ficava. Com a minha irmã.

19 junho, 2007

Baby Can I Hold You - Tracy Chapman

But you can say baby
Baby can I hold you tonight
Maybe if I'd told you the right words
At the right time
You'd be mine

Aconteceu-me


Eu vinha de comprar fósforos
e uns olhos de mulher feita
olhos de menos idade que a sua
não deixavam acender-me o cigarro.
Eu era eureka para aqueles olhos.
Entre mim e ela passava gente como se não passasse
e ela não podia ficar parada
nem eu vê-la sumir-se.
Retive a sua silhueta
para não perder-me daqueles olhos que me levavam espetado
E eu tenho visto olhos!
Mas nenhuns que me vissem
nenhuns para quem eu fosse um achado existir
para quem eu lhes acertasse lá na sua ideia
olhos como agulhas de despertar
como íman de atrair-me vivo
olhos para mim!
Quando havia mais luz
a luz tornava-me quase real o seu corpo
e apagavam-se-me os seus olhos
o mistério suspenso por um cabelo
pelo hábito deste real injusto
tinha de pôr mais distância entre ela e mim
para acender outra vez aqueles olhos
que talvez não fossem como eu os vi
e ainda que o não fossem, que importa?
Vi o mistério!
Obrigado a ti mulher que não conheço.


(Almada Negreiros)

Esta paz de não ter de quem cuidar.

Olho-me no espelho e percebo que há muitos anos não me vejo. Isto é, passo a escova pelos cabelos enbranquecidos, escovo os dentes, lavo a cara todas as manhãs, mas em nenhum destes gestos me dou o vagar de me olhar.
Penso no que deixei passar. Foi um casamento, o tempo todo preocupada com as calças, com a camisa, com a gravata do marido, depois com os filhos, estarão bem para ir para a escola, depois com os netos, uma repetição de tudo o que passou...
Invade-me um cansaço e olho o espelho. E não reconheço já aquela mulher. Tenho quase 80 anos e o que fiz da minha vida? Para além de ter vivido para o marido, para os filhos, para os netos, agora tenho bisnetos que não me ligam nenhuma, querem lá saber da velha que já não diz coisa com coisa... O marido morreu há anos deixando um vazio enorme. O vazio da falta da roupa dele para cuidar, das refeições como ele gostava que preparasse. A falta de o ouvir resmungar contra tudo o que eu fazia. A falta de o ouvir reclamar de mim. A falta de saber que agora não tenho um homem que tem outras mulheres... a falta sobretudo de saber que ele está ali.
Os filhos foram à vida, também já não são novos ainda que os veja sempre de bibe e calções curtos. É verdade. Às vezes até os vejo de chupeta... ou seriam os netos e é a minha cabeça que já não dá para mais.
Não tive tempo sequer para sentir a falta dos meus pais quando morreram, tanta gente à minha volta para cuidar. Não tive tempo para sentir saudades...
Mas hoje. Hoje olho-me no espelho e tenho saudades da minha infancia, do meu pai, da minha mãe, dos meus irmãos e primos e primas e amigos e vizinhos... que foi feito de toda esta gente? Olho-me no espelho e pergunto-me o que foi feito de mim? E porque agora esta paz de ninguém em meu redor me sabe tão bem? Porque só agora descobri esta paz.

18 junho, 2007

Loucos de Lisboa - Ala dos Namorados

São os loucos de Lisboa
Que nos fazem duvidar
Se a Terra gira ao contrário
E os rios nascem no mar

Ma blonde



Ouve, vagueio num espaço de luz cercado dum silêncio.
é um silêncio e não o teu... vejo claramente olhando, as
[mesas
o meu perfil que se volta docemente e não és tu,
em que braços te suspendes e flutuas os teus lábios
rigorosos de planície quando voas?..
Olha, fixa e furtivamente olha superiormente,
ó Cyborg que enorme já te ergues no teu luto,
a boca entreaberta como um ovo que é olhado
na doce e fresca idade que em breve nos espera
entoa já o canto dos fantasmas que dão fruto.

(Alexandre Vargas)

Só porque rir faz bem

Jantávamos num restaurante indiano, no coração de Lisboa, ali às Portas de Santo Antão. Os empregados, indianos, falam bastante mal português. O meu amigo faz o pedido. Por números. Às tantas interrompo-o, estás a pedir os pratos todos?, ele responde, estou apenas a pedir tudo o que pediste. O empregado que nos atende acena afirmativamente e sorri com um ar feliz enquanto o meu amigo continua a pedir. Numéricamente.
Continuamos a conversar. Somos interrompidos pela entrada em cena da candidata Helena Roseta, rodeada de um gupo (amigos ou família ou colaboradores, pouco importa). Tem um ar sereno. Não está ali em campanha. Está a gozar uma noite como qualquer trabalhador. Tem direito a esta pausa. Como eu. Como o meu amigo.
Entra então um daqueles vendedores de artesanato africano, que já fazem parte da paisagem turística de qualquer cidade europeia que se preze. Tenho-os encontrado por essa Europa fora, sobretudo nos países latinos. Portugal, Espanha e Itália estão cheios deles. Aparecem nos bairros típicos, nas praias que os turistas mais frequentam... geralmente as pessoas não gostam deles. Não os olham. Como se faz muita vez com os mendigos. (Para não vermos ou para não sabermos que existem?). Eu gosto deles. Gosto sobretudo de conversar com eles.
Depois do nosso não e de percorrer todo o restaurante tentando vender o que quer que fosse, abeira-se outra vez da nossa mesa e poisa no tampo dois relógios que tirou não sei de onde. Só tinha visto o artesanato. Pergunto-lhe se é senegalês, acena que sim, pergunto se de Dacar e ele continua a acenar com a cabeça que sim. E ri comigo. Brinco com ele em relação aos relógios. Digo-lhe que naquela mesa só usamos rolex verdadeiros. Ele olha-me e continua a rir. Insisto que aquela mesa é de pessoal dos rolex. Recolhe então a mercadoria e despede-se rindo.
O meu amigo repara. Diz-me, visto o que ele riu contigo? Vi. É muito bom rir, não é? Sobretudo de nada. De coisa nenhuma. Assim. Só porque temos vontade de partilhar um riso com alguém que não conhecemos de lado nenhum.

17 junho, 2007

Bamboleô - Ney Matogrosso (clica aqui)

Tudo passa nessa vida
Nada fica pra semente
Não se matando a tristeza
A tristeza mata a gente

A chave inglesa


Era um corpo inteiramente
português.
Transido de ternura
o óleo das suas mãos
protegia-me
o coração.

Não sei que mecanismo
despertava em si
quando chorava,
fazia crescer a relva,
meus dentes indecisos
como crias
corriam e devoravam.

Escreveu-me duas cartas
em cima de um tractor
e nelas descrevia
em frases simples
o modo tortuoso
que me fez traidor.

(Armando Silva Carvalho)

Ney canta e encanta em qualquer canto

Pela segunda vez assisti ao show do Ney "Canto em qualquer canto". Haverá quem diga que não sei o que fazer ao dinheiro, ou que haveriam outros concertos aonde gastá-lo. É verdade. Mas quando comprei os bilhetes não sabia que era o concerto a que assisti o ano passado. Se soubesse teria comprado? Teria! Claro.
Porque assistir a um concerto do Ney é sempre uma novidade. Para além de tudo eu adoro o tom provocatório, a pose do homem. Pois... provavelmente não bato bem da bola mas não sou a única... gosto de me sentir provocada. É sinal de que estou viva. E o provocador também.
Depois há muito tempo que não ia a um concerto com um amigo. Desta vez fui. E o meu amigo nunca tinha assistido Ney ao vivo. E pôde verificar que apesar dos 65 anos, Ney continua numa excelente forma física e sobretudo vocal. A sua presença em palco continua sendo poderosa, mostrando que nem só de plumas e lantejoulas vive Ney.
A música que é publicada aqui hoje, faz parte deste show e é bastante representativa da arte de cantar, dançar e encantar de Ney.
Mesmo sem que ele me fizesse a vontade, mesmo sem "Homem com H", saí feliz para a noite chuvosa de Lisboa...

16 junho, 2007

Ciranda da Bailarina - Adriana Calcanhoto

Reparando bem, todo mundo tem pentelho
Só a bailarina que não tem
Sala sem mobília
Goteira na vasilha
Problema na família
Quem não tem




Eu queria trazer-te uns versos


Eu queria trazer-te uns versos
muito lindos colhidos no mais íntimo de mim...
Sua palavras
seriam as mais simples do mundo,
porém não sei que luz as iluminaria
que terias de fechar teus olhos para os ouvir...
Sim! Uma luz que viria de dentro delas,
como essa que acende inesperadas cores
nas lanternas chinesas de papel.
Trago-te palavras, apenas... e que estão escritas
do lado de fora do papel... Não sei, eu nunca soube
o que dizer-te
e este poema vai morrendo, ardente de puro, ao
vento da Poesia...
como
uma pobre lanterna que incendiou!


(Mário Quintana)

A minha herança

Quando estiver na hora diz-me, acabou o tempo. Compro o teu tempo como quem compra pão. Tu sabes. Há anos que me ouves. Quantas horas já te paguei? Quantas horas me cobraste? Sempre menos do que as que me ouves, bem sei, mas és tu o dono do relógio, tu és o dono do tempo que me vendes. És tu que fazes o preço. Eu sei que me fazes um preço especial. Afinal ouves-me desde sempre. Desde que me lembro de mim...
Afinal porque te procurei? Por me ter esquecido de quem era, lembras-te? Se calhar não te lembras. É natural. Quem me ouviu nos primeiros anos foi o teu pai. Não sei o que ele te contou de mim. Não sei o que escreveu na minha ficha. Não sei se me catalogou como louca. E olha que não foi por falta de lhe ter perguntado. Mas nunca me respondeu. Se calhar eu também nunca lhe dei tempo para responder.
Na verdade não me parece que esteja verdadeiramente interessada na minha ficha. Venho aqui porque não me julgas. Lá fora sim. Todos emitem opiniões. Todos querem ajudar. Ficam aflitos quando me perguntam, lembras-te, e eu, não não me lembro, é verdade não me lembro. Mas às vezes não acreditam. Não sabem que eu não me lembro mesmo. Não sabem que a certa altura a minha memória apagou. Que muito do meu passado é feito das estórias que me contaram. Sobretudo o meu pai. O meu pai contava bem as estórias. É por isso que o meu passado é tão encantador. Porque foi o passado que ele decidiu dar-me.
A minha herança.

15 junho, 2007

Devolva-me - Adriana Calcanhoto

Deixe-me sozinho
Porque assim eu viverei em paz
Quero que sejas bem feliz
Junto do seu novo rapaz
Rasgue as minhas cartas
E não me procure mais
Assim vai ser melhor meu bem

Além-tédio


Nada me expira já, nada me vive ---
Nem a tristeza nem as horas belas.
De as não ter e de nunca vir a tê-las,
Fartam-me até as coisas que não tive.



Como eu quisera, enfim de alma esquecida,
Dormir em paz num leito de hospital...
Cansei dentro de mim, cansei a vida
De tanto a divagar em luz irreal.



Outrora imaginei escalar os céus
À força de ambição e nostalgia,
E doente-de-Novo, fui-me Deus
No grande rastro fulvo que me ardia.



Parti. Mas logo regressei à dor,
Pois tudo me ruiu... Tudo era igual:
A quimera, cingida, era real,
A própria maravilha tinha cor!



Ecoando-me em silêncio, a noite escura
Baixou-me assim na queda sem remédio;
Eu próprio me traguei na profundura,
Me sequei todo, endureci de tédio.



E só me resta hoje uma alegria:
É que, de tão iguais e tão vazios,
Os instantes me esvoam dia a dia
Cada vez mais velozes, mais esguios...



(Mário de Sá-Carneiro)

It's the life, Joe.

Acabo de ouvir Joe Berardo, segundo a nossa comunicação social, o 10º homem mais rico de Portugal (eu cá sou tão pobrezinha que para mim ele era o segundo logo a seguir ao homem da Sonae e que para além destes o resto eram fífias, parece que mais uma vez a minha ignorancia e desinteresse pelos negócios de cada um me deixam numa posição crítica!). Nunca tive realmente grandes interesses pelas fortunas de cada um. Dinheiro nunca foi coisa que me impressionasse ou que eu ambicionasse. Nem nos jogos da santa casa aposto, tal é o meu interesse por vir a possuir algum dia qualquer coisa parecida com um risco de dinheiro que se veja...
Mas prosseguindo, que eu já sabem, sou perita em começar a falar e mudar de assunto como se estivesse à conversa com a vizinha do lado (que diga-se de passagem, conheço muito mal). Pois o senhor Joe Berardo que eu também conheço muito mal e que agora quis dar um empurrãozinho ao seu Benfica lançando uma OPA sobre o mesmo, desiludiu-me profundamente. É verdade.
Não, não é por ele ser benfiquista que eu cá não faço questão de ser fã do maior clube do mundo. Para mim a ADO está muito bem e fica-me aqui ao pé, o que parecendo que não, é uma vantagem. E até está mais de acordo com o meu reles poder de compra.
É porque o senhor Joe (cá para mim ele é João e tornou-se Joe lá nas South Africa onde foi emigrante...), sofre como qualquer vulgar emigrante do mal de ter esquecido a língua mátria. O homem fala mal português. Muito mal. E eu não acho bem que um senhor tão importante, tão cheio de dinheiro e ainda por cima sócio do maior clube do mundo, que é português, não se tenha ainda dado ao trabalho de contratar um professor que lhe ensine o que não teve tempo de aprender por se ter ocupado apenas a ganhar dinheiro e o relembre do pouco que aprendeu naquela ilha maravilhosa onde nasceu e que pertence ao senhor Jardim.
Vá lá senhor Berardo. Arranje um professor que lhe dê umas liçõezinhas. É que é muito feio um português falar melhor inglês que a sua própria língua... embora eu pense que isto contraria o José. Mas o que é que eu hei-de fazer se é meu destino entrar constantemente em rota de colisão com o José?
É a vida!

14 junho, 2007

Vai Saber? - Marisa Monte (clica aqui)

Só porque disse que de mim não pode gostar
Não quer dizer que não tenha do que duvidar
Pensando bem, pode mesmo
Chegar a se arrepender
E pode ser então que seja tarde demais
Vai saber?

Um amigo


Há uma casa no olhar
de um amigo.
Nela entramos sacudindo a chuva.
Deixamos no cabide o casaco
fumegando ainda dos incêndios do dia.
Nas fontes e nos jardins
das palavras que trazemos
o amigo ergue o cálice
e o verão
das sementes.
Então abre as janelas das mãos
para que cantem
a claridade, a água
e as pontes da sua voz
onde dançam os mais árduos esplendores.


Um amigo somos nós, atravessando o olhar
os véus de linho sobre o rosto da vida
nas tardes de relâmpagos e nos exílios,

onde a ira nómada da cidade arde
como um cego em busca de luz.


(Eduardo Bettencourt Pinto)